nem frio, nem calor: apenas o cheiro de Jasmim, 2019
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A TRADIÇÃO DAS VARANDAS MANUAIS E A INOVAÇÃO COM O CROCHÊ DA NÊGA
São elas, as varandas, que causam, junto à tecelagem, grande impacto visual ao admirarmos uma rede. Podem não ter “função prática” nenhuma, mas as varandas são, certamente, sua face estética mais deslumbrante; elevam a beleza e, obviamente, o valor. Esse efeito é causado, principalmente, quando elas evidenciam a presença de mãos artesãs, que, sem dúvida, dão toques de magia a essa fabricação.
Se é fascinante apreciarmos uma varanda exposta em uma rede armada, também causa atração vê-la surgir manualmente, pouco a pouco, dos dedos rápidos de uma artesã, trabalhando ali em sua casa. Curioso dizer, mas varandas nascem em varandas. Surgem, geralmente, em espaços da casa mais abertos e amplos. Em sua feitura, podem ser usadas técnicas, materiais, cores e tamanhos diversos. As varandas manuais, como a elas se referem as artesãs, são de fato formosas e predominam entre as redes de Jaguaruana. A técnica é também conhecida por "macramé", pela qual os fios são agrupados com nós, formando padronagens geométricas e terminando abaixo em franjas. Já as redes "de sol a sol", feitas com um tipo de tecido mais macio, ganham, em geral, bonitas varandas de crochê. Tivemos, em nossa caminhada pelos bairros e localidades de Jaguaruana, a alegria de ver o nascimento de varandas manuais.
E há redes, tadinhas, que não têm varandas, talvez porque fiquem mais práticas ao uso diário, quiçá porque o freguês não é tão exigente, decerto porque ele precisa comprar muitas delas ou, quem sabe, porque o dinheiro está curto mesmo. Mas, é fácil concordar que as varandas imprimem mais charme, elegância e belezura às redes de dormir.
Precisamos contar aqui, também, que, casual e felizmente, durante o planejamento de nossa viagem, conhecemos uma inovadora varanda de crochê, sobre a qual pudemos conversar, ainda em Fortaleza, com seus produtores. Então, já saímos da capital cearense com os destinos pensados e traçados: além de Jaguaruana, passaríamos por Aracati, que é caminho, onde iríamos ao encontro de Eliomar Nogueira, a Nêga, como é conhecida. Ela, com outras mulheres que compõem seu grupo, é a artesã que produz a varanda com bolinhas de crochê, que eu carinhosamente apelidei de "soizinhos", tanto por seu formato redondo quanto em homenagem ao Ceará Terra da Luz, Terra do Sol.
Chamou-nos especial atenção o fato de que o fazer artesanal pode muito bem entrelaçar tradição e inovação, seguindo uma história que é viva, que tem altos e baixos, que passa por recuos, retomadas e novos rumos. Vimos que, no universo da fabricação das redes, a presença marcante do que é belo e tradicional pode coexistir com o belo e inovador. Vimos, assim, que novas gerações que decidem manter-se na produção de redes, veem e criam possibilidades outras, além do já reconhecido e valorizado modo tradicional de produzi-las.
Mais ainda do que isso, porém, Nêga nos confirmou um aspecto fundamental relatado pelos produtores e que faz enorme diferença na valorização do que ela produz e nas suas condições de vida e de trabalho: a precificação das varandas é feita conjuntamente entre a artesã e o produtor, alcançando, assim, valores bem superiores ao que, em geral, é adotado naquelas localidades. Inevitavelmente, isso a coloca em um lugar de reconhecimento e nela gera sentimentos de orgulho, de autoconfiança e de mais segurança para planejar seus projetos financeiros, como ela citou o valioso exemplo da compra de sua casa.
Ao conversarmos com Nêga, fomos realmente envolvidos em diferentes sentimentos, eixos e fios de uma meada complexa e fascinante, como é a história da fabricação de redes, incluindo nela passagens das trajetórias pessoais. Fugir de uma enchente com os pais e os irmãos sendo ainda criança é uma situação certamente assustadora, que se gravará nas paredes da memória. Em 1984, Nêga e a família tiveram que se refugiar em outra cidade, alojando-se em barracas de lona do exército. Naquele lugar improvisado não era possível dormir em redes, o que é fácil de se imaginar. Mas, talvez, não seja óbvio supor que isso seria exatamente do que uma criança tanto sentiria falta, naquele contexto precário: sua redinha. Ouvir esse impactante relato causou-nos espanto, pelo sofrimento vivido, mas também encanto, pelo apego ao aconchego da rede, sentimento esse maior do que muita gente, talvez, tenha a capacidade de alcançar. E Nêga teoriza: é um espaço de individualidade, cada um tem a sua. Sua rede e seu lençolzinho. E também nós, já tão apreciadores das redes, alargamos nossos afetos por esse artefato, ao ver como a rede é mesmo tão preciosa, representando, além de tudo que nela é visível e óbvio, um momento-lugar de subjetividades, em que cada um pode entregar-se a si, recolher-se, descansar e renovar suas energias para desafios e convivências vindouros.
O encontro com Nêga e sua família, presentes o esposo e duas filhas, abriu as conversas de nosso projeto, de uma forma muito mais rica do que previam nossas expectativas. O papo, além do tom agradável, foi uma oportunidade de a vermos trabalhar, cheia de graça e altivez. Com clareza, serenidade e firmeza, após nos relatar trechos valiosos de sua trajetória, a artesã, reflexiva, arremata a costura narrativa: o crochê, para mim, é trabalho, é terapia, é paixão, é tudo. Após meus filhos, é o crochê.