NEM FRIO NEM CALOR
APENAS O CHEIRO DE JASMIM
Cayo Vieira
Museu da Fotografia, Curitiba 2024.
por Milla Jung, curadora
Em Nem frio nem calor, apenas o cheiro de Jasmim, Cayo opera na potência da imagem como libertação do real, fazendo surgir um “outro” que, apesar da correlação figurativa, é enigma. Animar um corpo que jaz, não qualquer corpo, mas o corpo do pai, é um gesto radical sobre a “natureza” indicial da fotografia, um rompimento de contrato entre o que esteve diante da câmera e o que agora se constitui como imagem. Se no instante fotográfico o referente estava condicionado a ser ausência e passado, nas fotos vemos presença e futuro em vias de configurar-se, imagens-acontecimento de uma relação na qual afeto-natureza dão corpo ao que está vivo, apesar da morte. Uma fotografia que se nega ao noema clássico de Roland Barthes do “isso-foi” para alcançar um novo estatuto do “isso-é”.
por Cayo Vieira
Nem frio nem calor, apenas o cheiro de Jasmim é uma perspectiva sobre o processo de finitude, uma reflexão sobre pontos de vista, dimensões de tempo e permanência diante da morte. Foi a maneira que encontrei para decodificar o imaginário fabricado em torno do luto. No deslizamento de conceitos, como ausência e presença, impotência e ação, realidade e invenção, criei estratégias de vida durante o processo de despedida do meu pai. Um diálogo entre nós, no qual o afeto foi re-atualizado, o sentimento de apagamento se diluiu em matéria, a falta em desejo e o sintoma em ato através de territórios fotográficos.
Os mortos fazem daqueles que ficam, fabricantes de narrativas. Tudo começa a se movimentar - sinal de que alguma coisa ali insufla a vida.
O título evoca a transitoriedade da primavera, em que a variação térmica e o desabrochar das flores de Jasmim fazem uma analogia com a ideia de inconstância e imprevisibilidade da vida, associada à permanência da memória.
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o valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade. [...] Quanto à beleza da natureza, ela sempre volta depois que é destruída pelo inverno, e esse retorno bem pode ser considerado eterno, em relação ao nosso tempo de vida.
Por medo, talvez desespero, escolhi fotografar os últimos instantes de vida do meu pai para guardá-lo “vivo”, para que, em outro espaço-tempo, pudesse elaborar sua morte. Carreguei três câmeras com três filmes coloridos e fotografei os últimos momentos do meu pai ainda vivo, bem como os lugares por onde transitei entre os dias 17 e 19 de setembro, seu velório e o espaço onde foi cremado no dia 20 de setembro de 2019. Rebobinei esses três filmes e, ao invés de revelá-los, dando fim ao processo ー o que confirmaria sua ausência ー, os coloquei novamente nas câmeras, expondo a película mais uma vez, como um modo de continuar dilatando a dimensão de estar presente, em duplas exposições.
Viajei até Morretes, cidade que ele gostaria de estar, levei suas cinzas e fotografei os lugares em que estivemos juntos em 1992. A imprevisibilidade da técnica de rebobinar os filmes para usá-los outra vez permitiu que mais de duas imagens se sobrepusessem de modo não linear, criando o formato panorâmico em que os filmes foram digitalizados, assumindo posições involuntárias enquanto realizavam o último desejo do meu pai: morar em Morretes.
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Os mortos abrem espaço no sentido de que desenham novos territórios [...]
Curiosamente, a justaposição de lugares não criou simplesmente uma soma de imagens dispostas uma sobre a outra. Essa combinação resultou em uma outra dimensão. Meu pai e eu criamos um material de superfície do inimaginável, talvez um tríptico espacial, um surto psicótico ou, ainda, um panorama fotográfico que tenta, sem sucesso, capturar fragmentos de uma viagem, uma jornada.
não apresentam aos vivos apenas problemas geográficos - situando e inventando novos lugares -, mas são, literalmente, geógrafos. Eles desenham outras estradas, outros caminhos, outras fronteiras, outros espaços.
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Revisitar esse trabalho para expor ao público, cinco anos após sua produção, me provoca a avaliar sobre as condições da minha escuta analítica. Vou compreendendo que o luto se dá na movência das relações com o outro; como o próprio percurso que se desenvolve em território analítico: a cada vez, um movimento avaliativo de reterritorializações. Uma produção singular e extrapessoal. Não seria justamente isso o luto, transformar o que se perde em devir?
Pensamos demais em termos de história, pessoal ou universal. Os devires são geografia, orientações, direções, entradas e saídas.
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