top of page

Ao Cayo

por Elenize Dezgeniski


Ao ser convidada para a escrever sobre a performance EU OU do artista Cayo Vieira, sou levada a pensar em uma certa relação de especularidade entre nós: sobre nossas histórias paralelas; ambos somos filhos de fotógrafos e “herdamos” a profissão, o exercício de uma mesma práxis; a fotografia de cena, nossas proposições no campo da arte, que tocam na feitura e desfeitura da imagem, no afeto dos corpos e também com as palavras em nossos percursos particulares com a psicanálise. Somos, de alguma maneira, testemunhas um do outro. Somos contemporâneos, vivemos e trabalhamos na mesma cidade e nossos trabalhos têm muitos pontos em comum. E é bonito entrar em contato com esses “nós” compartilhados.

 

Digo “nós”, porque talvez a experiência mais preciosa de estar com o outro é para que tenhamos a possibilidade de nos sentirmos mais sós. Se eu posso dizer “eu” é porque posso dizer “tu” em contornos mais ou menos definidos. E é nessa zona de penumbra e movências, onde coisas são veladas, reveladas e desveladas que se abrigam os “nós”.

 

A capacidade de construir imagens guarda uma relação estreita com a constituição da nossa subjetividade. Quando a criança se percebe como separada do corpo da mãe, ou quem quer que ocupe essa posição, diante do espelho e faz de si uma imagem completa pela primeira vez, acontece a inauguração do Eu e do Imaginário. Esse acontecimento chamado Estadio do espelho, conceito lacaniano, nos aponta para o papel do Outro em nossos arranjos possíveis como sujeitos.  Operação que não acontece sem perdas, como acontece com tudo que realmente conquistamos enquanto seres de linguagem.

 

EU, é também um pronome pessoal que indica a relação das pessoas do discurso, OU, que mora dentro da palavra outro, evoca uma zona de transição em seu sentido de conjunção de alternância.  Cayo aponta para o que está em evanescência sem deixar de apontar para o que está em latência. Lembro que a palavra fotografia é mais da metade da palavra biografia.

 

Fotografar, assim como escrever, é uma forma de dar a ver a evidência de uma ausência, conjugando tempos distintos numa mesma superfície. 

 

Remetendo ao filósofo Roland Barthes, trabalhamos com o “isso foi”, noema próprio da fotografia, onde “a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela” (1984).

 

Mas Cayo dá uma volta de parafuso a mais, construindo um ritual fotográfico onde a foto do ser desaparecido aparece apenas de relance e não volta, apontando para uma espécie de queimadura de Real na imagem, evocando aqui, Georges Didi-Huberman e Walter Benjamim, quando abordam a imagem como um sintoma “capaz de guardar um signo secreto à espera de uma redenção”, onde sua eventual beleza guardaria o lugar de uma crise inquieta. Para Didi-Huberman  “Saber olhar uma imagem, seria de certo modo, tornar-se capaz de discernir onde ela queima” (2018).

 

Há taquicardia, uma narrativa e um corpo em relação no espaço, uma espera e aquilo que é próprio das artes da presença, sua aparição e desaparição em um espaço físico e de tempo determinados.

 

Dou um passo, adentro a caixa preta. No estúdio, vejo um varal com fotos veladas e o fotógrafo, que revela a pulsação de uma imagem prestes a desaparecer. A fotometria da iluminação é precisa, nem um ponto a mais, nem um ponto a menos. O trabalho vai se construindo no ritmo de um cuidadoso ritual analógico.

 

Vejo a construção da câmera, por dentro e por fora, peça por peça - câmara clara.

 

Após a construção, a exposição, passo fundamental para impressão da luz sobre o papel.

 

A imagem do fotógrafo sob a capa preta respira, convoca, convida. Outra exposição, a de uma pessoa do público, que fica tempo suficiente diante da câmera para que a imagem se imprima no fundo do aparato fotográfico.

 

Antes disso, as pessoas da plateia se projetam sentadas sobre o banquinho de madeira, que também pode ficar vazio, o tempo se dilata.

 

Cayo, ao montar a câmera sobre o tripé, constrói um objeto relacional, um gesto, um acordo entre um eu e um tu. As posições oscilam, o fotógrafo está em cena.

 

Recolhe o negativo da câmera de madeira e o leva até a bandeja com os químicos líquidos onde a imagem aparece, pulsa e desaparece, num piscar de olhos inicia sua marcha rumo à velatura. 

 

Velamos a imagem, pendurada no varal, junto às outras, seres desaparecidos, imagens moventes que remetem à memória do gesto. O fotógrafo se afasta, muda de posição e seu faixo de luz amplia a paisagem.


 

Curitiba, 14 de março de 2023.

referências:

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tad. Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima. Trad. Helano Ribeiro. Curitiba: Ed. Medusa, 2018.

bottom of page