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Um Fotógrafo na Dança

por Fernanda Silva


 

Faz parte da arte da performance dar ao corpo um status central  e essencial de análise. Na arte da performance o corpo é tudo, embora exista um mas, o humano que faz do seu corpo mídia para as artes performativas vive a pressão e o estresse de morar ou ao menos visitar um entre, que dependendo da dramaturgia da obra se torna mais ou menos visível, onde o corpo também não pode ser dado nem como absoluto e nem apenas como parte. Então, o que é o corpo na arte da performance na contemporaneidade no Brasil ?

Este texto analisa de uma perspectiva de fora um ensaio que assisti presencialmente do performer e fotógrafo Cayo Vieira na cidade de Curitiba no Paraná na noite de 12 de fevereiro de 2023. A obra em questão tem o título de: EU OU e tem como colaboradora Cândida Monte e vem sendo realizada dentro do programa de residências artísticas 20MINUTOS.MOV.  Não tem o caráter de crítica no sentido do senso comum como um discurso que aponta fragilidades ou elogios a determinados aspectos da criação ele é mais uma prótese de memória que deseja dar pistas de um processo que germina e amadurece ao longo do tempo como frutos de um tempo e também de um “chão comum”.

Chão comum é uma expressão que eu ouvi mais de uma vez da boca de Cayo Vieira e o termo traz beleza e consistência ao que quero aqui chamar de : fruição. É por essa estrada, por esse chão que vou prosseguir e também onde dou âncora aos meus pensamentos. Digo isso porque como já mencionei a minha perspectiva é de alguém de fora, uma perspectiva de quem assistiu um ensaio de uma experiência  que tinha um tempo de trabalho de sala de cinco semanas. Fruição também porque, a princípio falo como público. Embora eu seja também artista, essa qualidade não me coloca em um lugar especial ou de poder. Minha análise dada em forma de texto é quase um depoimento, um testemunho de sensações e pensamentos que a obra me foi capaz de causar.

 

O LUGAR 

AMBIÊNCIA OU CENOGRAFIA - A DRAMATURGIA DOS OBJETOS

Quando nossos olhos alcançam o espaço da apresentação nos deparamos imediatamente com a leitura de um homem que revela uma foto, logo, é um fotógrafo. O dado mais importante pra mim aqui é que não estamos de uma ação “fake “. Não estamos diante de uma pessoa que finge fazer. Ele faz. O corpo faz e sabe fazer. O corpo tem e já em si toda a informação. Há quase nenhuma luz no ambiente e nossos olhos são levados a olhar para aquilo que o performer/fotógrafo olha. Tem uma beleza enorme aqui. De repente, sem percebermos, estamos todos olhando para o mundo de quem estava lá primeiro. Compartilhamos o seu mundo mas ainda estamos assustados ( já que há pouca luz e tudo é ainda estranho ) e estamos comovidos com a intimidade imediata que estamos involuntariamente envolvidos. É tempo também de os nossos olhos começarem a passear pelo ambiente. Buscar detalhes. Farejar símbolos. Entrar na cosmologia do espaço-tempo do que está no acontecendo enquanto público.

UM VARAL DE FOTOS QUEIMADAS E O MITO DE SÍSIFO

Imagens que nunca chegam ao seu destino? Vidas interrompidas? Fracassos? Manifestação de algum tipo de poder? Não ter respostas aqui é o melhor. Não dizer tudo. Deixar buracos para o público cair em seus próprios abismos.

O TERCEIRO OLHO

Pensando sobre a luz que vem da testa do performer três semanas depois que vi o ensaio me veio a imagem de um terceiro olho. O terceiro olho que olha junto com os outros olhos para a parede e que faz a projeção da luz aumentar e que me fez pensar no momento que eu assistia sobre o sol. O sol. Deus Apolo. A beleza do mundo. Ele nasce e também dorme, Brilha para todos. Símbolo de alegria e plenitude. Ele é dado e depois some. É trágico.

ANDAR PARA TRÁS / DESLOCAMENTO ESPACIAL/ DANÇA MIÚDA

Perguntamo-nos se, EU OU,  é uma dança e onde está a dança nessa performance? Afinal,  é mais fácil talvez afirmar que ela não é teatro e que estamos diante de uma performance como se o termo fosse capaz de abraçar tudo que ficasse fora de uma determinação de uma linguagem ou de outra, ou dança ou teatro. Essa ausência de fronteira é tão rica que ainda não encontrei termos adequados para expressar sua importância. A peça consegue quebrar, borrar, diluir essas formas cartesianas de enxergar o mundo e a vida. Nisso a peça consegue ser “ líquida”. Interessante que existe uma presença "líquida" no espetáculo que é a solução para a revelação. Chamo de “dança miúda” uma dança que parece escondida no nosso cotidiano pois pra mim tudo dança e dança a nossa volta e dançamos o tempo todo. O andar para trás é um movimento fora do cotidiano mas é também uma ação comum. Andamos para trás para ver melhor um quadro ou para afinar nossos olhos para ver se um prego foi colocado num lugar certo na parede e basta levantar o calcanhar o mínimo possível que, ali, o movimento poderia nos fazer lembrar Michael Jackson. Então, de algum modo, o movimento de andar pra trás tem um registro no imaginário social da cultura pop como um passo de dança. A “dança miúda” não grita: eu estou aqui. Olhem para mim. Ela está lá. Ela é. Quase sempre não se nota, mas está lá.

EU OU

INTERFACES COM A FILOSOFIA E A PSICANÁLISE

A peça  tem uma possibilidade enorme de gerar discursos através de reflexões da sua forma conceitual. Conceitual pra mim vem de uma dança que toma os gestos/coisas/lugares de uma vida comum e lança luz em um recorte performativo extracotidiano. A vida é aquilo que fazemos como trabalho no capitalismo ou ela também  é tudo aquilo que nos acontece enquanto fazemos planos. Pensar sobre o ato de fotografar como ofício não é pensar sobre todos os ofícios da terra? Pensar o “eu” também não é pensar o “outro”? Pensar o “eu” também não é pensar o “se”? E se eu fosse outra pessoa? E se fizesse outra coisa na vida e se eu não tivesse nascido? 

O GRANDE FINAL

Há um convite. Um convite ao público feito e mantido no silêncio para participar da performance. Surge diante dos nossos olhos um lugar lá,  vazio,  que espera ser preenchido. É um lugar no mundo.  Entra em cena aqui a criação de um espaço-tempo suspenso onde esperar algo acontecer está acontecendo. É pura vida. O novo. A surpresa vai se fazer a qualquer momento. Artista e público se arriscam na espera. Essa espera é cheia de sensações e sentimentos que acionam nossos pensamentos para mil lugares. Quando alguém vai lá e assume o lugar de “o objeto fotografado “ e a imagem termina borrada… pra mim tem algo de trágico. Tudo volta. Tudo repete. A vida será isso? Sempre voltar ao mesmo lugar. Perder sempre mesmo quando não se está sequer lutando. Perder a imagem. A imagem e a identidade são a mesma coisa ? Como uma cria a outra ou se desprende uma da outra ?  Rolar a pedra até o topo e vê-la rolar até o pé da montanha outra vez, sucessivamente, é possível fazer isso com alegria ? Fazer isso sempre e manter ainda o desejo não será isso o grande desafio de todo performer das artes vivas ? Ter alguém do público fotografado e tendo a sua imagem borrada é talvez uma lembrança de que a vida é maravilhosa e passa rápido demais e que somos pequenos frente ao vasto universo e somos singulares e únicos mas também somos bilhões de pessoas na terra. Ali, quando a foto vai para o varal, lembramos que somos mais uma pessoa no mundo e que é exatamente por isso, por sermos, pequenos frente ao universo que deveríamos nos fazer seres humanos melhores, estradas pode ser muitas para isso, e a arte pode ser sim um chão comum para pisarmos juntos e fazer juntos também do mundo um lugar melhor.

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