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TÃO LINDAS ESSAS REDES! MAS... QUANTO VALE O LABOR DE UMA ARTESÃ? 

 

Refiro-me à artesã, no gênero feminino, porque ela constitui a visível maioria das pessoas que garantem a alta qualidade do acabamento artesanal das redes de dormir, em Jaguaruana, embora tenhamos encontrado, também, homens realizando essas atividades. 

Fotografia em preto e branco mostrando uma senhora branca de cabelos lisos e regata florida. Seu olhar está direcionado para a máquina de tear manual, com uma das mãos segurando uma haste de madeira, enquanto outra levemente erguida segurando um novelo pequeno de fios. Ao seu lado esquerdo pedaço de uma rede em tom xadrez desce até o chão. Ao fundo parede de cimento, partes descascadas e tijolos aparentes.

O que queremos pensar aqui, que certamente tem relação estreita com o fato de serem elas predominantemente do gênero feminino, é sobre o seguinte, vamos considerar alguns fatos: não é raro que a reação primeira ao apreciarmos uma bela rede de dormir seja de admiração, quando a vemos exposta na varanda, na sala ou no quarto. Gente de muitos cantos a adquirem e a exibem como um artefato atraente, destacando-a em seus espaços e tendo-a como um bem inspirador de descansos e sonhos; além daqueles que já a possuem desde que nascem, que já a incorporaram como parceira "natural" do dia a dia e que a mantêm em suas casas, compondo os ambientes e nela dormindo.  

 

Quando se anuncia que a rede é artesanal, mais suspiros e elogios ela ganha. E mais valor ela tem! As redes de Jaguaruana estão no topo do que há de melhor e mais bem produzido no universo das redes de dormir. Sem exagero, são uma verdadeira marca, são faladas e reconhecidas por sua qualidade, e, às vezes, são até imitadas, vejam só! Há redes que não o são, mas bem que queiram ser. Risos.  

 

O que muitos provavelmente não cogitam, porém, é que lá no Brasil profundo, onde as redes são confeccionadas, lá nos recantos longínquos, distantes das cidades grandes, lá onde parecem estar escondidas as artesãs e seus encantos, há um labor árduo, demorado, produzido em condições difíceis e de baixa, baixíssima remuneração. 

Fotografia em preto e branco mostrando duas pessoas sentadas ao chão encostadas em paredes perpendiculares. Da esquerda para a direita uma menina de regata, cabelos escuros e presos. Uma mulher de regata florida, cabelos ondulados e curtos. Ambas com o olhar direcionado para um grande tecido decorado com listras que repousa sobre suas pernas, e as mãos emaranhadas em pedaços de fios.

Somente em maio de 2021, um dia desses, o Ceará, ganhou o seu primeiro selo de Indicação Geográfica (IG), na espécie Indicação de Procedência (IP), concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Adivinhe qual é a graça desse produto??!! Elas, justamente: as redes de Jaguaruana. Tal selo valoriza e visa a proteger sua qualidade e sua originalidade, definindo critérios de produção e evitando que unidades feitas em outros locais sejam vendidas como se de Jaguaruana fosse, fato esse comemorado pelos fabricantes. No entanto, e isso fizemos questão de perguntar ao Presidente da Associação dos Fabricantes de Rede de Jaguaruana, Júnior Pinheiro, o selo não prevê a melhor remuneração das artesãs e dos trabalhadores de um modo geral. O selo parece olhar, então, para o produto e para o produtor. Mas não cuida de quem, na prática, a produz, de quem segura sua qualidade literalmente na mão: as artesãs. Talvez o selo, por suas características, não tenha esse alcance, mas, contraditoriamente e muito provavelmente, ele estará em risco, se pensarmos em sua existência pelos próximos anos e décadas. Imaginamos haver um projeto de futuro e não apenas de valorização do passado ou mesmo de garantias para o presente, quando um selo dessa natureza e de tamanha amplitude – por seu caráter nacional - é instituído.  

 

A análise está muito genérica? Pois vamos entrar em alguns exemplos (é quase certo que quem nos lê vai assustar-se com os números, supomos sua reação): uma artesã recebe em torno de R$2,00 (dois reais!), por seu trabalho, em cada rede, e o executa em cerca de dez redes, diariamente. Entendeu? Faça as contas: R$2,00 X 10 igual a R$20,00 (vinte reais!), por dia de trabalho. De uma labuta que começa bem cedinho, que se estende por horas diárias, que ocupa parte de sua casa e de sua família, que precisa ser dividida com as diversas tarefas do lar e que não a deixa descansar nenhum momento, até o entardecer, às vezes avançando pela noite... R$20,00 por dia! Se ela trabalhar 6 dias por semana, ganha R$120,00 (cento e vinte reais!), semanalmente! Isso dá cerca de R$500,00 (quinhentos reais!), por mês. Menos da metade de um salário que já é mínimo, hoje – 2022 – no tímido valor de R$1.212,00 (mil duzentos e doze reais).  

 

Toda essa conta é somente para assustar e entristecer a leitora e o leitor? Não, claro que não. Mas é para pensarmos juntos que se a precariedade dessas condições de trabalho e a baixíssima remuneração já vêm tornando escasso o número de moradoras interessadas em seguir essa tradição, é muito provável que as novas gerações cultivem cada vez mais outros sonhos profissionais. A maior escolarização vai abrindo possibilidades... O que é ótimo. Mas também pode trazer maior qualificação para as artesãs, o que é/seria maravilhoso, manter profissionais no artesanato, com maior escolarização, desde que alcançando condições de trabalho e remuneração dignas.  

Fotografia preto e branco com destaque em uma mulher fotografada do queixo até a cintura. Ela usa regata estampada com formas geométricas. Uma de suas mãos segura um pedaço de fio com os punhos cerrados, enquanto a outra aberta e dedos retos oferece suporte para a linha.

O risco do desaparecimento das etapas artesanais na feitura das redes, portanto, existe. E isso foi, de certa forma, anunciado, tanto nas falas das artesãs quanto dos próprios fabricantes com quem conversamos. Assim, há risco para a própria manutenção do selo IG, recentemente concedido, pois ele exige, entre outras condições, o acabamento artesanal das redes de Jaguaruana. Supomos que é de interesse dos produtores e dos gestores públicos manterem essa qualidade e garantirem o selo. Para isso, mais do que reconhecer o problema, é considerá-lo uma urgência, no que diz respeito à dignidade de vida e de trabalho das artesãs. Há de se viabilizar soluções, para além do argumento da competitividade que não permite melhorar a remuneração delas. E essas soluções, pelo que vimos no desenrolar dessa história, está mostrando que passam, inevitavelmente, pela valorização do trabalho, pela remuneração justa e pelas condições em que elas trabalham e vivem, inclusive porque trabalham onde vivem. 

 

Sobre o selo IG das redes de Jaguaruana  

https://ifce.edu.br/noticias/rede-de-jaguaruana-recebe-indicacao-de-procedencia-ip 

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